Esse relato servirá a dois nobres motivos: o registro para a posteridade e a chance do reconhecimento e reflexão dos homens.
Era noite e estávamos sentados na sala, cada um com sua distração particular. A tv ligada dava a consistência dos relacionamentos familiares modernos. É assim na minha casa, como em todas as demais. Meu pai, figura ímpar em vários e controversos sentidos, usava uma tesoura para cortar pequenos pedaços de barbante. Eu, no sofá oposto, fazia uma mistura de trabalho com preguiça e cansaço mental.
Apesar de sermos tidos como normais, existem muitas minúncias que são somente percebidas no lido diário de nossas vidas. O exemplo dessa passagem, é a propensão compulsiva de papai por ser do contra.
Acredito - com certo esforço - que isso é mais um traço de sua personalidade do que de outra coisa qualquer e tento, na maioria das vezes, aceitar isso com um imenso suspiro conformado.
Papai tem seu trejeitos e todos temos o direito de te-los. Uns nos irritam mais que os outros, mas todos são absolutamente superáveis.
Acontece que nessa noite ele estava em uma disputa particular. Queria - de alguma forma - que nós sucumbíssemos a essas pequenas epifanias de contrariedades que ele tinha. Qualquer que fossem nossas palavras - minhas, de mamãe, dos cachorros ou do bebe - ele teria alguma resposta previamente elaborada para nos dar. Claro, a resposta tendo sentido ou não, era do contra.
Resisti bravamente a todas as colocações dele que me levassem a uma resposta qualquer. Só fiquei ali, vivenciando o conjunto familiar no silêncio de minhas obrigações.
Era tarde, como eu já disse, e o volume da tv foi diminuindo. Ele com a tesoura na mão e seu nheque-nheque característico. Eu no sofá oposto, já desligando o computador me deparo com esse diálogo.
"Tá ouvindo esse barulho?"
"Qual pai?"
"Esse que parece um agudo. Mas parou agora."
Ele voltou a manusear a tesoura e ela voltou a fazer o nheque-nheque e o barulho agudo - que era resultado do atrito entre as partes da tesoura.
"Ah! escutei agora. Deve ser a tesoura..." Não que aquela frase pretendesse colocar um ponto final para a conversa, mas era a sugestão mais racional que se podia encontrar as beiras da meia noite.
Essa foi a oportunidade perfeita para ele. Do alto de sua imensa contrariedade, ele solta essa:
"Não; não é isso. A tesoura faz um barulho que nós não conseguimos ouvir e lá fora tem um morcego que - por escutar super bem - responde a tesoura, pensando que ela é uma fêmea."
Depois de todo esse raciocínio, só me restou ir dormir. Não sem antes rir por 15 minutos seguidos.
nayarac.